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quarta-feira, 25 de maio de 2016

Barbárie



Ariovaldo Ramos

Há alguns dias, segundo noticiado, em São Paulo, policiais foram participar de uma reintegração de posse, numa das escolas ocupadas pelos estudantes, por causa do roubo, por parte do estado, da merenda escolar; quando solicitado a mostrar o mandato de reintegração de posse, o policial, não apenas disse que não o tinha, como declarou que a partir de agora não precisava mais.

O "a partir de agora" dele, referia ao fato de que havia passado na Câmara dos Deputados Federais, em Brasília, o pedido de impeachment da presidente da República, parece que o policial, ainda que intuitivamente, talvez, por causa do seu trato constante com a lei, se deu conta de que tudo estava acontecendo ao arrepio da lei e, portanto, a lei não valia mais.

 Há poucos dias, na Bahia, na capital, segundo notícia, um jovem negro, menor de idade, foi indevidamente, detido por policiais que, ao invés de levá-lo para a delegacia, seja porque pretexto fosse, levaram-no a um lugar retirado e o torturaram. Depois da tortura, o soltaram, porém, o jovem não resistiu aos maus tratos e acabou morrendo, claro, por falta de socorro imediato, uma vez que sua versão não recebeu crédito junto aos que deviam tratá-lo, até que fosse tarde demais. Parece que, a exemplo dos colegas de São Paulo, os policiais da Bahia, também, agiram como se a lei não valesse mais.

 E, mais recentemente, uma jovem foi estuprada por cerca de 30 homens, no Rio de Janeiro; tudo isso foi devidamente publicizado via Twitter, com direito a foto e comentário. Estes hediondos bandidos agiram sob a mesma lógica: a lei não vale mais.

 O nome disso é Barbárie, estado de caos que se instala a partir de, no imaginário popular, ficar estabelecido que a lei, de alguma maneira, foi revogada, isto é, não existe mais estado de direito, e, independente de que qualquer possível repressão pela força do estado, isso significa, portanto, que todos os desejos estão liberados, às custas da capacidade da imposição de um indivíduo sobre o outro, de modo que se estabelece a Lei do Talião e o confronto direto entre todos. 

 Não é de hoje que no Brasil há uma sensação de impunidade, isto é, que algumas pessoas jamais serão punidas pelos seus crimes, por causa da posição que ocupam, ou dos "padrinhos" que têm. Tudo parecia mudar quando o governo, agora sob Judíce, deflagrou processo investigatório, a partir da Polícia Federal, que começou a incriminar e a prender os, antes, inalcançáveis.

 A mídia, porém, convenceu a população de que o governo que deflagrava a investigação era, de fato, o grande culpado pela corrupção que investigava. Um grupo considerável de brasileiros, portanto, começou a exigir a deposição deste governo, sob cuja administração os processos investigatórios foram levados a efeito. 

Graças à sua pressão um processo de impeachment foi instalado, com consequente afastamento da presidente da República, embora, o motivo alegado para deflagrar o processo de impeachment não encontrasse respaldo legal. O país foi dividido, enquanto um grupo festejava a instalação do processo de impeachment, outro grupo protestava afirmando estarmos sofrendo um golpe, isto é, um desmoronamento da democracia brasileira.

 Durante todo o processo de clamor popular, pró e contra o impedimento da presidente, muitas vozes ecoaram, inclusive de juristas togados, denunciando o descumprimento da Constituição Federal, mas, o processo passou na Câmara dos Deputados Federais. Entretanto, a forma como passou foi tida, graças aos pronunciamentos dados pelos representantes do povo, como um circo de horrores, pela demonstração de descaso para com mérito da questão e para com o cumprimento da Constituição.

 O acolhimento do processo pelo Senado Federal, não foi menos decepcionante, a começar pela relatoria, que foi denunciada pelos juristas que o relator citou como apoio à sua tese, uma vez, que tais juristas, não só declararam não ter dito o que foi mencionado no contexto em que o foi, como declararam discordar com a conclusão do relator.

 Com toda essa movimentação por parte dos legisladores, a população, frente ao silêncio dos juízes, foi tomada pela perplexidade, isto é, mesmo os que apoiavam o impeachment foram assaltados pela dúvida de que algo não fora bem. A presidente da República foi temporariamente afastada, um governo temporário se estabeleceu, que, pelas regras constitucionais, deveria apenas manter a continuidade do governo em pauta, mas, que começou a agir como se tivesse um novo mandato.

 O presidente temporário, contra a lei, montou um novo ministério, e propôs um novo programa de governo e, pasmem, na composição de seu ministério contou  e conta com a participação de vários dos acusados de corrupção, pela investigação proposta pelo governo que, agora, temporariamente, substitui.

 Esse quadro, por si, denunciava que a lei não valia mais; não bastasse isso, um dos ministros mais fortes do governo temporário foi delatado, por meio do vazamento de uma conversa sua com outro acusado na operação investigatória, onde ele admitia ter sido um dos proponentes de um golpe de estado para impedir o avanço das investigações que o povo, que pediu o impeachment, tanto queria ver triunfar.

 Além de se apresentar como um dos proponentes, denunciou que contava com apoio de juízes e de militares para a execução desse golpe de estado. Depois do vazamento, o ministro, em questão, foi exonerado sob certa relutância, porém, sequer foi interpelado, e mais, nem os militares, nem os juízes disseram qualquer coisa. O ministro voltou ao Senado, como se nada tivesse dito, nada tivesse proposto, e nada tivesse acontecido.

 Outras situações vieram a agravar esse quadro, um religioso de renome veio a público para defender o ministro que se admitiu golpista, e, embora, aos juízes fosse, oficialmente, pedida investigação e consequente indiciamento de um dos delatados pelo ministro, que, quando candidato a presidente da República, chegou a ser acusado de narcotraficante, o juiz designado, simplesmente, disse não haver necessidade de investigação.

Muitas outras anomalias poderiam ser aqui apontadas: comportamento e declaração de juízes, com abuso de poder; a sensação de que no país só existe um juiz, que apoia incondicionalmente, um juiz de 1ª instância, que um dia acusou de descumpridor da lei; manipulação de informação por parte dos que receberam, do Estado, concessão com o precípuo dever de informar, como parte do modo de viver democrático; cooptação de religiosos, sob aparente promessa de lhes permitir impor sua moral a habitantes de um estado que garante o culto a todas as manifestações de fé, conquanto que não tentem a hegemonia institucional.

 Assim, em relação à corrupção no país, os denunciados estão no poder; todos os direitos adquiridos estão sendo questionados, inclusive, já declarados relativos por alguém que deveria zelar pela Justiça; e da Carta Magna se fez tábula rasa. Parece, então, surgir, no chamado inconsciente coletivo, uma constatação, o estado de direito não vale mais no país, isto é, estamos num país sem lei, reina, portanto, já, de alguma forma, o ímpeto à barbárie. 

Gente de todo o mundo denuncia que no país há, em curso, um golpe de estado; que uma das maiores nações do planeta está a ser transformada em mera republiqueta. A esperança, que insiste em não morrer, é a de que haja um resto de decência no Senado, e essa vergonha nacional e internacional, com suas fatídicas consequências externas e internas, seja interrompida, e voltemos à normalidade democrática e ao império da lei.