Ariovaldo Ramos
Um colega de Igreja, na periferia de São Paulo, região, então, pobre, nos idos da década de 80, formou-se em Direito, na melhor escola do país, era uma proeza, não eram muitos dos nossos que o logravam. Nós, jovens cristãos protestantes e pobres, minoria entre os despossuídos celebrávamos tal vitória, que, mais que pessoal, era um salto para todos nós.
Não tardou que todos nós, ciosos de nossa fé, nos sentindo guardiães de uma nova realidade que se anunciava, a conversão dos pobres à fé protestante, começássemos a inquirir sobre o nosso papel, uma vez que fazíamos parte de um grupo novo, os pobres, que, carregados por sua fé, começavam a entrar nas melhores universidades para estudar ciência, antes, reservada para a elite econômica oriunda da religião, outrora, oficial.
A formação em direito, mais que qualquer outra, era alvo preferencial dessa aferição entre prática profissional e postura confessional, e me lembro de ter sido o que perguntou ao irmão, em questão, se ele defenderia alguém, mesmo sabendo da culpa deste.
Meu companheiro de fé deu-me uma das respostas mais marcantes que já tive o privilégio de obter, como fruto de uma inquirição. Disse-me ele que, sim, defenderia o suposto réu, mesmo sabendo de sua culpa, porque ele não estava no papel de quem tem de provar a inocência de seu cliente, mas, de quem vigia para que o Estado só puna aquele de quem, da forma mais inconteste possível, consiga comprovar a culpa. Disse-me que entrava no tribunal não pelos culpados, mas, pelos inocentes, de modo a garantir o cumprimento do Estado de Direito.
Naquele dia compreendi que o papel do juiz era garantir que a lei, e só a lei fosse aplicada, respeitados todos os rituais de um processo, onde fosse garantido, de forma ampla e irrestrita, o direito à defesa.
Compreendi que aplicar a justiça, que, no projeto cristão, deve começar com a formulação da lei, tinha, de fato, a ver, sem detrimento à nossa utopia, com a garantia de um processo, onde o direito à defesa fosse amplo e irrestrito, onde a lei fosse o mérito que a todos iguale, e a sua aplicação só se desse mediante a comprovação incontestável da infração da mesma. Em havendo qualquer dúvida o réu deveria ser poupado das injunções inerentes.
Por isso, como cidadão, estou estarrecido com o que se me parece, ao assistir o julgamento, por parte do STF, da ação penal 470, conhecida como "mensalão". A cada manifestação que assisto, dá-me a impressão de que a lição aprendida pelo amigo dos idos de 80, não vale mais. Fico com a nítida sensação de estar assistindo a um desfile da subjetividade, quando o que se espera da corte é a objetividade que dirime qualquer dúvida sobre a quebra da lei. Indícios não bastam, é preciso comprovação.
Estou estarrecido, porque, desde há muito, aprendi com o meu amigo que um tribunal se estabelece por causa dos inocentes, não dos culpados. Um tribunal se estabelece para que se reafirme a nação que se pauta pelo Estado de Direito, onde ninguém, por mais desafeto que seja à opinião pública será condenado, a menos se comprove, de fato, a sua culpa perante a lei.
Estou com medo de vir a ter medo de pisar num tribunal, por não saber mais o que esperar, diante da possibilidade do subjetivo se impor. Tenho medo de estar a assistir ao retrocesso de uma nação. Da minha nação!©ariovaldoramos